sábado, 3 de maio de 2008

Idêntico.

Quem sou eu? Mas que pergunta mais babaca! Eu sou o mesmo que você é, um bosta de um humano. Não somos singulares, apenas inventamos as singularidades. A merda que eu fiz você também fez, talvez com um formato diferente, mas merda é merda, concorda? A poesia que eu escrevi é a sua vitória no campeonato de poquer, o tricô bem-sucedido, um ace num jogo de tênis, uma gozada depois de uma bela punheta. A faca que eu ergui para a minha mãe é a palavra cortante que você proferiu a um amigo, o olhar de desdém que você lançou para um pivete, a traição que você inflingiu à sua esposa.

Tudo a mesma merda, meus caros. A mesma falta de propósitos. Tudo o mesmo perfume também, o mesmo alívio momentâneo. Toda ação é copiada, toda a história da existência também é uma cópia. "Eu" não existe; sou um espelho que reflete você, também um espelho. Quem somos nós? A sucessão contínua do nada. A imagem repetida do que não tem imagem. A falta de forma, de propósito. Somos como os pequenos átomos que nos formam, mas com um disfarce crível de algo maior e mais importante. Nos recusamos a aceitar, mas nossos movimentos são como os deles, nosso comportamento e vida, no geral, também o são. Abominamos o pensamento de que não temos razão para ficar aqui, que somos a desordem em carne e osso, assim como ela é desordem também em outros corpos e estados. Somos obrigados pelo pensamento a nos ver diferentes da pedra, do corvo, do sangue, do resto. Somos obrigados a ser algo mais, nossas crenças fomentam esse dogma. Nos é vetado o direito de ser o que o resto é, eis a verdade. Nos é vetado ser o reflexo constante de imagem nenhuma.

Apesar disso, ainda somos tal coisa. O problema é que fugiremos para sempre disso, e por isso continuaremos nos perguntando sobre objetivos e o porque da existência. E se o coelho pudesse contestar sua condição de presa? Ainda assim seria coelho, fraco e pequeno. Ainda seria o que é. Somos o coelho, contestamos, mas não é possível sair do lugar. Seremos os reis do mundo que nós enxergamos sozinhos, governantes e governados de nós mesmos e do próximo, para todo o sempre. Já estão consolidados os painéis de desenhos mutantes que nos impedem, infelizmente, de sermos vazios. Nos tiram a calma, nos trazem a vida como ela é, longe do propósito inicial. Qual outro ser contesta sua existência? Nenhum. Apenas existem, ao contrário do homem, que se vê obrigado a encarar o tempo inteiro algo que ele não é, ou pelo menos não deveria ser: uma imagem onde deveria haver o nulo.

Enquanto a humanidade teimar em responder a pergunta "quem eu sou?", terei certeza absoluta que ainda será humanidade, um conceito artificial criado por auto-gênese, um simulacro de algo distinto do resto da existência. Já estamos cercados pelos nossos cárceres de ouro, contruídos e fortificados geração por geração, sistematicamente. Não vemos, porém, um cárcere: vemos apenas o ouro. O que salta aos olhos é o que brilha, não o que aprisiona. Não temos vontade de nos libertar porque não vemos do que devemos nos livrar. A condição de insatisfação consigo mesmo passou a ser nosso padrão, e a luta sem fim e sem sucesso pela satisfação é o ouro que vemos e buscamos, errôneamente. "Quem eu sou" não corresponde a nada disso. Isso que existe hoje não é ser, é estar. Estamos sendo ludibriados por aquilo que nos mais afasta da natureza e de tudo o que é primordial. Estamos sendo enganados pelas nossas mentes. Ela preenche o que deveria ser maleável, torna sólido o que deveria ser livre e transitório. Se querem acreditar em bençãos e maldições, não tenham dúvidas que a mente é a nossa sina, nosso repetitivo capataz a atormentar-nos com suas dúvidas e caprichos. Ela é a barreira que nos impede de responder com acuidade a pergunta que me levou a escrever isso. Para ser o que somos, enfim, nos afastamos de tudo mais que também é, há e existe, nos desfizemos de quaisquer similaridades com aquilo que nos originou.

Somos simplesmente vida, e para ser belo, não precisa ser mais que isso. Na verdade, não deve ser mais que isso, e eu tenho a nossa existência como prova.

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