terça-feira, 28 de abril de 2009

Flauta doce.

Um suspiro transformado em nota; o som é por vezes triste, talvez idílico, mas sempre infantil, difícil de ser levado a sério. O bom flautista deve guardar em si uma porção significativa da sua infância para que as músicas permaneçam fiéis ao espírito pueril do instrumento. Ele deve cuidar dessa parcela do eu com uma certa frequência, alimentando-a com incertezas, paixões distantes e surtos de criatividade que nunca serão lapidados.

Talvez a maior exigência da flauta seja uma sensação de permanente deslocamento e solidão por parte do seu dono. É possível que ele nunca toque com amigos em qualquer tipo de conjunto, que sua arte nunca seja apreciada e que ele seja encarado como um bobo que nunca quis aprender um instrumento musical decente. Mesmo depois de ser colocada em segundo plano, a flauta ainda exigirá tudo isso para soar verdadeira.

Quase um estigma, então. Uma marca interna, um pacto entre... entre duas crianças, a bem dizer. Como ser completamente adulto quando você insiste em tocar algo chamado flauta doce? Impossível. Da mesma maneira que é impossível para o flautista se sentir totalmente sozinho ou deslocado caso ele seja acometido por uma incerteza, uma paixão distante ou um surto de criatividade inocente; ele sempre terá sua lúdica companheira para cantar suas infantilidades.

terça-feira, 7 de abril de 2009

Deus.

Dê-me licença. Pretendo usar meu livre-arbítrio para deixar minha vida aos cuidados do Outro. Aquele que é distante, que só escuta sussurros enigmáticos, que tudo tem e tudo pode e que me agraciou com a própria benção que estou prestes a renunciar. Aquele que é obrigado a aceitar minha decisão abnegada e imbecil de devolver o que tenho de mais precioso, de jogar de volta a responsabilidade e o direito que eu deveria ter, ou talvez não deveria. Nunca se sabe.

O caso é que, gostando ou não, estou me oferecendo como seu instrumento. Use-me em quaisquer tarefas que possam fazer parte do seu louco plano de melhorar aquilo que você queria que nós transformássemos sozinhos. Quero deixar de ser um pedreiro para virar uma ferramenta nas Suas divinas, suadas, sangrentas e peludas mãos, mas veja se toma cuidado para não me sujar no processo, certo? Quero deixar de ser uma canção para me tornar um eco da sua voz grossa e imponente. Ecoando com os outros irmãos, é certo que conseguiremos ser ouvidos. No pior cenário, vamos abafar o som de alguém que ainda queira cantar.

Como recompensa pelo meu altruísmo, peço apenas que opere uma cura em mim. Ainda não achei a minha doença; não há médico ou terapeuta que consiga me diagnosticar ou tratar e todos dizem que estou bem, mas é mentira. É mentira! Eu estou doente sim. Deve ser a gula, a luxúria, a ira ou uma das outras coisas que Você me permitiu praticar em primeiro lugar. Bem, seja qual for o caso, rogo que não demore para salvar minha alma pecadora que só fez seguir os seus desígnios.

Amém.